Diz Que Fui Por Aí, O ARRANJO #20 (English subtitles)
Em outubro de 1964, a cantora Nara Leão deu uma entrevista bombástica para uma revista afirmando:
"Chega de Bossa nova, chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento"
Para quem era chamada de musa da Bossa Nova, contra a vontade dela, diga-se,
aquilo era um rompimento violento, ou parecia ser
Nara tinha se aproximado do que na época se chamava de samba autêntico,
de compositores como Zé Keti, Cartola, Nelson Cavaquinho e Elton Medeiros
O marco da aparente ruptura da Nara com a Bossa Nova foi o seu primeiro LP
Quando perguntaram pro Tom Jobim o que ele achava da entrevista da Nara renegando a Bossa Nova ele respondeu:
"Autênticos são o jequitibá e a avenca. Mas não é autêntico o jequitibá ser avenca e vice-versa"
Nara diria a amigos que se arrependeria pela contundência da entrevista,
e procurou Jobim e Vinícius para se explicar
Mas qual jovem não se rebela, em algum momento, contra a geração que o precedeu?
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
Se você está gostando de assistir aos episódios, pense na possibilidade de apoiar a série O ARRANJO
e assim colaborar pra eu manter o programa
A partir de apenas 10 reais! Acesse apoia.se/oarranjo
Diz que fui por aí foi, provavelmente, o primeiro grande sucesso de Nara Leão,
é uma parceria de Hortêncio Rocha e Zé Kéti
Nascido José Flores de Jesus, Zé Keti ganhou o seu apelido quando a sua mãe trabalhava como doméstica
e tinha que deixar o filho com as irmãs enquanto tava trabalhando
"Quando a minha mãe chegava pra me visitar perguntava pras minhas tias assim: Como é que é?
O Zé ficou quieto? O Zé ficou quietinho, não fez nenhuma arte?
Zé quietinho, Zé quietinho, acabou Zé Keti"
Zé Keti nasceu e cresceu no subúrbio, mas frequentava os botequins e sambas dos morros,
e virou um cronista da vida nos morros e da boemia carioca
Não tocava nenhum instrumento, compunha as melodias se acompanhando numa caixa de fósforos
e mesmo assim compôs melodias rebuscadas
Era da ala de compositores da Portela desde os seus 20 anos,
mas a sua carreira deslanchou quando ele tinha 34 anos e Jorge Goulart gravou um dos seus grandes clássicos,
"A voz do morro", em 1955, com arranjo de Radamés Gnatalli
Participou como ator em filmes de Nelson Pereira dos Santos também no musical Opinião,
cuja música título é uma composição sua, nesse musical el atuou ao lado de Nara Leão e João do Vale
Nesse vídeo eu vou analisar a versão de Nara Leão para Diz que fui por aí,
com arranjo e o violão estupendos de Geraldo Vespar
UM POUCO DE HISTORIA
Roberto Menescal ia fazer 15 anos e era o rei do posto 4, em Copacabana
Tinha uma turminha boa, composta por um monte de garotos e 4 meninas
Três desses amigos eram filhos da atriz Mara Rúbia, conhecida vedete do Teatro de Revista,
que ofereceu a casa pra festa dos quinze anos do garoto Roberto
Mas faltavam meninas na turma, não dava pra fazer uma festa com 4 garotas só,
e o Menescal resolveu sair na rua convidando as meninas na saída dos colégios
"Aí eu atravessava e ia lá: olha, você sabe quem eu sou?
Porque eu era meio conhecido no posto 4, eu achava que todo mundo me conhecia
Aí quando eu vi a Nara, eu via sempre ela passando, com uma menina, atravessei correndo e fui lá
Oi, tudo bem? Tudo bem. Você sabe quem eu sou? Não sei não.
Me deu uma fria, assim. Vai ter uma festa, eu expliquei.
A gente vai sim! Vai mesmo? A gente vai sim, vamos nós duas
E acontece o seguinte, a gente só se conhecia com aquele uniforme, né?
Ela com aquele uniforme com a gravatinha pretinha e tal, blusa branca.
Aí de repente toca a campainha e eu abro a porta e é aquela mulher, com aquele vestido azul piscina até os pés
Bobeou um pouquinho eu tirei ela pra dançar
Começamos a conversar um pouquinho e ela muito inteligente, muito clara,
eu um bobalhão total, mas ela era muito inteligente"
Nara nasceu em 1942, em Vitória, Espírito Santo, mas um ano depois a família se mudou para o Rio de Janeiro
O pai advogado e a mãe professora deram uma educação muito livre para ela e para a sua irmã, Danuza
Era uma família que a própria Nara classificava de especial, com poucas regras,
onde não se comemoravam aniversários, natal, revéillon, não se tinha a obrigação de sentar a mesa para almoçar,
era uma família sem as convenções da sociedade do anos 50
O pai não dava importância para estudo formal, faculdade,
o importante para ele é que as filhas trabalhassem e não ficassem dependentes de marido
Nara afirmou que foi uma adolescente problemática, com muitos problemas existenciais
A personalidade exuberante da sua irmã, Danuza Leão, 9 anos mais velha, de uma certa forma a intimidava
"Aí ela entrava, oi, pai, mãe, não sei o quê, e a Nara ficava assim, olhando de longe, ela não falava nada
Aí ela falava: Oi, Narinha, tudo bem? Oi, Roberto, tudo bem? É Roberto, né? Era uma coisa assim...
E ela ficava, segurava a blusa assim...
Você via que era uma coisa de timidez dela e também intimidadora da Danuza,
ela tomava conta do pedaço, era sempre Danuza"
Nara gostava das artes, gostava de desenhar e de música, fez aulas de pinturas e de piano até descobrir o violão
"Eu ganhei um violão com 11 anos e começava a tocar, eu e o Menescal,
a gente tinha aula junto, com o Patrício Teixeira"
Patrício Teixeira era um cantor e instrumentista, foi um personagem importante na música brasileira nos anos 1920 e 30,
trabalhou com Pixinguinha e Donga, e também se dedicou a ser professor de violão
Nara continuava a surpreender Menescal com a sua cultura, apesar de ser 5 anos mais jovem.
Foi a Nara que apresentou o jazz para ele, ela ficou impressionada que ele nunca tinha ouvido uma banda de jazz!
"Vai lá em casa pra gente ouvir um pouco de jazz. Eu digo, ouvir o quê? Eu nunca tinha ouvido falar em jazz"
Quando Nara se mudou com os pais para um amplo apartamento na Avenida Atlântica, de frente pro mar,
os amigos da Nara e do Menescal começaram a se reunir na sala do famoso apartamento
que já foi citado tantas vezes aqui no programa
"Aqui era o verdadeiro clube da Bossa Nova, a casa de Nara Leão"
Nara sempre negou que ali tivesse nascido a Bossa Nova, mas é um fato que um certo grupo se reunia sempre lá,
e desse grupo faziam parte Menescal, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Luis Carlos Vinhas e Ronaldo Bôscoli
Bôscoli era bem mais velho do que a turma,
mas resolveu aceitar o convite de Menescal para conhecer uma turma jovem que fazia uma música nova
Quando Bôscoli tocou a campainha quem abriu foi a Nara
Segundo ele contou em seu livro de memórias, foi amor à primeira vista, pelo menos para ele
E eles começaram a namorar, ele com 28 anos e ela com 15
Nas reuniões Nara cantava muito pouco, os amigos não viam nela um talento,
o próprio Bôscoli não via nela qualidades como cantora, e sempre deixou isso claro pra Nara
Ela chegou a dizer que achava que só permaneceu no grupo por causa do apartamento e por sua excelente memória:
Nara sabia de cor todas as letras, melodias, todos os acordes,
e quando alguém se esquecia de alguma música era sempre a Nara que lembrava
No primeiro show da Bossa Nova, na Faculdade de Arquitetura, Nara estava lá mas sequer foi cogitada pra cantar
Sua estreia foi no dia 13 de novembro de 1959, a dois meses de completar 18 anos,
no segundo show da Bossa Nova, na Escola Naval
Foi Silvinha Telles que a apresentou:
"quero apresentar pra vocês um dos mais novos elementos da Bossa Nova,
que faz hoje a sua primeira apresentação em público!"
(áudio original da primeira apresentação pública da Nara Leão)
Nara afirmou no seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som que entrou em pânico,
cantou de costas para o público e quase chorando, mas foi muito aplaudida
O namoro com Bôscoli seguia firme, era provável que eles se casassem, mas não acabou nada bem:
Bôscoli se envolveu com a cantora Maysa então uma das maiores estrelas da música brasileira,
o caso chegou aos jornais, e o namoro acabou.
Nara rompeu com o Bôscoli e, por consequência, com a Bossa Nova,
a fase da turma no apartamento da Nara acabou aí
"Roberto, tem uma coisa, eu pensei muito, eu vou acabar com as reunião do grupo da gente
Porque o Ronaldo é meio o cabeça da coisa, ele que manda, ele que faz o negócio todo, então só tem um jeito:
é separar totalmente do Ronaldo, só assim eu vou conseguir terminar com ele. E foi assim"
Quem também estava brigado com Bôscoli era Carlos Lyra, mas por outro motivo,
que envolvia as gravadoras Odeon e Philips, como eu contei no programa sobre a música Coisa mais Linda
Nara e Carlos Lyra se reaproximaram e Lyra fez um convite para Nara participar de um espetáculo com ele e Vinícius de Moraes
Vinícius e Lyra compuseram uma comédia musical chamada Pobre Menina Rica,
mas antes de fazer a peça propriamente dita eles lançaram as músicas num show, que foi chamado de "Trailer"
A direção geral era de Aloysio de Oliveira e a direção musical de Eumir Deodato,
e o espetáculo foi na boate Au Bon Gourmet, de Flávio Ramos
Nara nessa época namorava o cineasta Ruy Guerra e com ele vieram novos amigos,
como Gláuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, cineastas ligados ao Cinema Novo
Todos cineastas e intelectuais de esquerda, e segundo Carlos Lyra, o Cinema Novo politizou Nara Leão
Quando eu fui fazer o meu primeiro disco eu rompi com a Bossa Nova.
Porque foi uma fase, pra mim, pessoalmente, que eu descobri um outro lado na vida,
um mundo que não era só um sorriso, a flor e o amor,
e eu fiquei muito impressionada com coisas que eu não sabia e descobri naquele momento.
Eu descobri que havia fome, eu descobri que havia morro, eu descobri que havia pessoas pobres,
porque eu nunca tinha me dado conta"
Carlos Lyra já estava politizado desde o fim dos anos 1950,
quando trabalhou em São Paulo com Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri no Teatro de Arena
Junto com Oduvaldo Viana Filho e Ferreira Gullar,
Carlos Lyra fundou o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes,
o CPC da UNE, Lyra era o diretor musical
A ideia de Lyra era levar a Bossa Nova para as ruas, mas principalmente, trazer a música do povo para a classe média
O CPC da UNE promoveu shows com grandes sambistas como Cartola, Nelson Cavaquinho,
Zé Keti, Ismael Silva e outros mais,
para apresentar a verdadeira música do povo para os estudantes burgueses, como se dizia na época
Todos esses grandes nomes estavam, naquele momento, completamente ignorados pelas gravadoras e pela grande mídia
Carlos Lyra fez diversas reuniões com esses compositores na sua casa e gravou muitas fitas com o repertório deles
Mais tarde, Carlos Lyra passou essas fitas para Nara Leão, e algumas músicas do primeiro LP da Nara vieram desse material
Aloysio de Oliveira tinha convidado Nara para gravar um disco pela sua gravadora, a Elenco,
e estranhou o repertório que ela selecionou, misturando Baden, Lyra e Vinicius com sambas dito autênticos
Aloysio esperava um repertório de Bossa Nova mais clássico, e não os sambas que a Nara escolheu,
que não tinham nada a ver com a imagem de "garota de Copacabana" que a ex-musa da Bossa Nova representava
Na época do lançamento do disco ela deu uma declaração para o seu então cunhado,
o jornalista e compositor Antônio Maria,
que dizia que inventaram uma personalidade artificial para ela, que nunca foi musa de nada e de ninguém
O que ela sempre teve foi uma inteligência artística, um faro único
Segundo o biógrafo de Nara, Sérgio Cabral,
"a Nara tinha uma intuição impressionante para o novo em matéria de música popular
Em toda a sua carreira nunca saiu atrás de qualquer novidade, sempre foi original, sempre se antecipou às modas"
Muitos acharam, equivocadamente, que a Nara tinha abandonado a bossa e ido pro outro lado,
para o lado do samba tradicional, quando na verdade ela tava indo pra frente,
ajudando a formatar o que chamamos hoje de Música Popular Brasileira, a MPB
1. MELODIA Aloysio de Oliveira disse numa entrevista ao jornalista Tárik de Souza que Diz que fui por aí é um samba estilizado,
um samba bossa nova
Sérgio Cabral discorda, e dá bons argumentos: diz que essa samba nasceu na quadra da Escola de Samba da Portela,
onde Zé Kéti fazia parte da ala de compositores, como eu comentei antes
A primeira parte, "se alguém perguntar por mim, etc", que seria uma espécie de refrão da música,
foi composta por Hortêncio Rocha pra ser cantado na quadra da escola
Era o que se chamava um samba de terreiro, foi cantado muitas vezes na quadra,
e já era conhecido por muita gente quando Zé Kéti fez a segunda parte do samba: "tenho um violão pra me acompanhar"
O que deu ao samba um caráter mais estilizado, bossanovístico mesmo,
foi o violão incrivelmente moderno de Geraldo Vespar
A harmonia, os acordes tocados por Vespar, não tem nada a ver com os acordes tocados nas quadras de escolas de samba,
é uma outra linguagem, totalmente diferente, jazzística -
não é melhor e nem pior: é apenas outra linguagem, diferente
2. ORQUESTRAÇÃO Com o distanciamento dos anos, fica difícil entender porque esse disco foi considerado, na época,
uma ruptura tão grande com a Bossa Nova
Esteticamente não foge dos parâmetros da Bossa Nova: um samba cantado de forma suave,
sem arroubos, com uma instrumentação econômica
Nesse caso bem econômica, apenas violão de Geraldo Vespar, o contrabaixo de Gabriel Bezerra e bateria de Juquinha
Não era uma composição de alguém ligado ao movimento, mas isso não quer dizer nada:
João Gilberto gravou a vida inteira, desde o seu primeiro disco, muitos sambas compostos na década de 1940,
músicas de Geraldo Pereira, Bide, Marçal, Dorival Caymmi, Ary Barroso
Sim, o violão de Geraldo Vespar não tem nada a ver com o violão do João Gilberto em termos de batida
Para comparar, sem querer comparar,
o violão de Baden Powell nunca foi um violão joão gilbertiano, e nem por isso foi alguma vez foi rotulado como anti-bossa nova
Era um seguir em frente, ir além, seguir adiante na linha evolutiva da música popular brasileira,
como diria poucos anos depois Caetano Veloso, na época da tropicália
3. A FORMA DO ARRANJO No samba se usa muito, ainda hoje, a expressão "a primeira" do samba e "a segunda",
que são, claro, a primeira e a segunda parte da música
Normalmente a primeira é o refrão, a parte que se repete,
e a segunda é um desenvolvimento do tema, que pode ou não ter mais de uma letra
No caso de Diz que fui por aí a segunda parte tem uma letra só
Essa gravação tem uma introdução de 6 compassos e segue a música inteira
Aí repete a introdução e a primeira parte de novo
Pra fechar a música tem de novo a introdução, só que agora só pela metade
Começa com dois blocos de convenção e uma frase ascendente de violão
O violão faz quase sempre uma resposta da melodia, tem a frase melódica, o canto,
e no espaço antes da próxima frase o violão responde
Baixo e violão tocam a mesma melodia, é uma outra convenção
Convenção é quando todos tocam juntos um ritmo determinado
Para seguir para a segunda parte o violão toca algo bem parecido com o violão de Chega de Saudade
quando vai pra segunda parte também
A diferença é que aqui vai para um acorde menor
A bateria fazendo o ritmo só nos pratos de contratempo
De novo os dois blocos de convenção
e a frase ascendente de violão
Continuam as respostas do violão
De novo a convenção, a bateria acompanha o ritmo
E, pra acabar, de novo os dois blocos de convenção
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,
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Muito obrigado, até uma próxima