Chefes de UTIs ligam ‘kit covid’ a maior risco de morte no Brasil
Uma das principais estratégias do governo federal na pandemia foi apostar no chamado
"kit covid" ou "tratamento precoce", que inclui medicamentos como cloroquina e ivermectina.
Mas, segundo médicos que chefiam UTIs de hospitais de referência, a defesa e o uso desses
medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença têm contribuído para aumentar
o número de mortes de pacientes graves.
Eu sou Nathalia Passarinho, repórter da BBC News Brasil, e hoje vou explicar de que maneira
o uso do chamado "kit covid" afeta lá na ponta o trabalho dos profissionais da linha de frente,
que tratam de pacientes nas UTIs.
De acordo com médicos de hospitais como o Albert Einstein, Hospital das Clínicas, Emílio
Ribas e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, o uso desses medicamentos sem
eficácia científica impacta de três maneiras a mortalidade por covid:
Provocando efeitos colaterais sérios em pacientes graves, retardando a procura por atendimento
médico e, por fim, desviando recursos que poderiam ser usados, por exemplo, com remédios para
intubação e leitos de UTI.
Vamos a cada um desses três pontos.
Bom, desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro vem defendendo o uso de cloroquina
e outras substâncias, como o vermífugo ivermectina e o antibiótico azitromicina
como tratamento para a covid.
Nos primeiros meses de 2020, era natural a especulação sobre esses remédios
já que estudos preliminares ainda estavam sendo conduzidos.
A covid era novidade e não se sabia qual o melhor tratamento.
Só que, mais de um ano depois, diversas pesquisas já demonstraram que remédios como cloroquina
e ivermectina não são eficazes contra a covid.
Mesmo assim, o presidente Bolsonaro continua defendendo o uso.
Muitos têm sido salvos no Brasil com esse atendimento imediato.
Neste prédio mesmo [o Palácio do Planalto], mais de 200 pessoas contraíram a covid e
quase todas, pelo que eu tenha conhecimento, inclusive eu, buscou esse tratamento imediato
com uma cesta de produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a anitta, a azitromicina,
vitamina D, entre outros , e tiveram sucesso.
Mas não é bem assim, segundo especialistas em UTI com quem eu conversei.
O médico Ederlon Rezende, que é ex-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira,
me contou que entre 80% e 85% das pessoas infectadas pelo coronavírus vão ser assintomáticas
ou desenvolver sintomas leves da doença.
Para esses pacientes, usar o "kit covid" não vai ajudar em nada.
Também pode não prejudicar, se a pessoa não tomar doses excessivas, não desenvolver
efeitos colaterais nem tiver doenças que possam se agravar com esses medicamentos.
Mas, para os 15% ou 20% restantes, que precisam de internação, essas drogas podem prejudicar
o tratamento no hospital e contribuir para a morte.
A preocupação são os 15% que necessitam de uma hospitalização
e metade desses acaba vindo para a UTI.
Esses pacientes que vêm para a UTI que têm a forma mais grave é onde mais preocupa o uso prévio desses medicamentos,
porque é nesses pacientes que os efeitos adversos dessas drogas se manifestam com maior frequência
e podem ter impacto sim na sobrevida deles.
Os médicos chamam a atenção para o risco de a hidroxicloroquina causar arritmia cardíaca,
um dos efeitos colaterais possíveis desse remédio, que normalmente é usado para pacientes
com lúpus e malária.
Numa pessoa que evolui para quadro grave de covid, isso pode fatal, já que a doença
causada pelo coronavírus também afeta o coração, promovendo inflamações do músculo
cardíaco e trombose nos vasos e tecidos.
Já a ivermectina, se tomada em excesso ou combinado com outros medicamentos, como é
o caso da cloroquina, pode provocar insuficiência renal.
Ederlon Rezende também diz que tem tido problemas com pacientes que precisam ser sedados para
intubação e que acordam da sedação com uma confusão mental mais acentuada por causa
do uso abusivo de ivermectina antes de chegar ao hospital.
O uso abusivo de ivermectina, que é uma droga que também penetra no cérebro quando ele
está inflamado, e ela deprime mais ainda o cérebro e piora ainda mais a qualidade desse despertar.
Essa também tem sido intercorrência frequente nos pacientes que usaram de maneira abusiva e desnecessária.
E mesmo outros efeitos colaterais mais leves da cloroquina e da ivermectina, que não causam
qualquer preocupação numa pessoa saudável, podem prejudicar e muito o tratamento de um
doente grave, que já está com funcionamento de órgãos comprometidos e com dificuldade
para respirar.
O que acontece é que não muda a taxa de intubação, né? Essas medicações... e acaba trazendo
mais efeito colateral.
Você pode ter mais hepatite, mais insuficiência renal, então acaba complicando mais por efeito
colateral.
Dá diarreia, antibiótico dá diarreia, acaba tendo mais infecção, porque selecionou a flora
intestinal…
e Mais recentemente, Bolsonaro passou a citar bastante a Nitazoxanida, conhecida pelo nome comercial Annita.
O problema é que, além de não haver qualquer evidência científica da eficácia contar covid, as pessoas
passaram a tomar esse vermífugo junto com outro, a ivermectina, que eu já mencionei antes,
intoxicando o organismo.
Estão tomando doses cavalares e tudo junto, sabe?
A interação entre os remédios também não é legal.
Estão tomando ivermectina, azitromicina, Anitta junto com a ivermectina.
Isso é um absurdo.
Tomar dois vermífugos?
Outro problema foi a inclusão recente, no "kit covid", de corticoides.
É verdade que pesquisas mostram que eles ajudam a reduzir a mortalidade de pacientes
graves, ou seja, aqueles que precisam de ventilação mecânica por máscaras ou intubação.
Mas, no restante da população, o uso pode provocar problemas sérios.
Para o paciente que tem um covid leve, pouco sintomático ou assintomático, o corticoide pode até baixar a imunidade
e propiciar outras doenças.
E muitas vezes eles davam esse corticoide junto com antibiótico.
Se, por azar, o covid piora e o doente vai ter uma infecção agora, ele vai ter uma infecção
mais grave porque ele está tomando remédio imunossupressor e ele vai ter uma bactéria resistente a esse
antibiótico que você já queimou, que você já usou inadequadamente.
O supervisor da UTI do Instituto Emílio Ribas, Jaques Sztajnbok, também diz que o uso "preventivo"
de azitromicina e corticoide, como defendido pelos que advogam pelo "kit covid", causa
mais mortalidade do que protege.
Se você dá corticoide para paciente com covid antes da necessidade, ele terá um desempenho
pior.
Ele morrerá mais do que se tivesse sido adequadamente tratado.
Agora, vamos às contribuições indiretas do "kit covid" para as mortes no Brasil, segundo
médicos de UTIs.
A primeira delas, é a "falsa segurança" que esses medicamentos produzem, retardando
a procura por atendimento médico.
Começou a surgir notícia de que tal medicamento salva vida, tal medicamento previne...
Então alguns prefeitos, quando o paciente tinha covid, davam um saquinho de um "kit covid".
Então, em alguns locais as pessoas mais crédulas achavam que tomando aquilo não iam pegar
covid nunca . Então muitos demoraram para procurar assistência.
Entre os riscos de se procurar ajuda muito tarde está a intubação tardia.
A pessoa com covid pode acabar lesionando seriamente o pulmão pelo próprio esforço
feito para respirar, a ponto de o problema não poder ser revertido com ventilação
mecânica e intubação.
A pneumologista Carmen Valente Barbas, que
coordena equipes no Albert Einstein e no Hospital das Clínicas, explica que a insuficiência respiratória
aguda pode evoluir rapidamente para a morte.
Outra coisa que estão fazendo: ficando com falta de ar em casa.
Isso é um perigo também.
Ou alugando oxigênio para ficar em casa.
Porque é uma doença que evolui muito rápido.
Quando você tem uma deficiência respiratória aguda com falta de oxigênio, você não deve
ficar com oxigênio em casa, porque você pode evoluir muito rápido com necessidade
de ventilação mecânica invasiva, intubação, e se você ficar em casa, você não tem esse
recurso, você pode evoluir rápido e morrer em casa.
Ou morrer na porta do pronto socorro.
Vamos agora ao terceiro impacto do kit covid nas mortes:
O gasto de dinheiro e tempo em remédios sem eficácia comprovada, que poderiam ser usados
na compra de equipamentos, vacinas e na produção de um protocolo nacional com orientações
para o atendimento de pacientes graves com covid.
Um levantamento feito pelo repórter André Shalders aqui na BBC News Brasil mostrou que os gastos
do governo Bolsonaro com cloroquina, hidroxicloroquina, Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida
somaram quase R$ 90 milhões até janeiro deste ano.
Enquanto isso, médicos e associações farmacêuticas alertam que o estoque de medicamentos necessários
para intubação está perto de acabar.
E, passado um ano da pandemia, o Ministério da Saúde não produziu até agora um documento
com informações para os profissionais de saúde seguirem no tratamento de pacientes
graves com covid.
O médico infectologista Fernando Bozza, que é pesquisador da Fiocruz, é autor de uma
pesquisa que mostrou que 80% dos pacientes intubados com covid no Brasil morreram no
ano passado.
A título de comparação, a média global de mortalidade é de 50%.
Não se investiu em se disseminar a informação dos tratamentos que tinham evidência, por exemplo
da utilização de esteroides nos pacientes que necessitam de oxigênio, numa identificação
mais precoce dos pacientes com insuficiência respiratória, da utilização de estratégias
mais precoces de ventilação não invasiva, ventilação em prona, quer dizer o paciente
ventilado de barriga para baixo, nas medidas de controle de infecção, e assim por diante,
na boa prática.
Por hoje é isso.
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Até a próxima!