A DEVASTAÇÃO DAS MISSÕES - EDUARDO BUENO (1)
"'Não Vai Cair no ENEM' Missões 2, Cena 1, Take 1".
"Não!
Esse vai chamar… Bom, pode chamar 'Missões 2', tá bom".
"Cena 1, Take 1".
Ah, era o paraíso na Terra!
Um monte de índio dócil, que não praticavam o canibalismo.
Que sabiam o lugar deles e trabalhavam cumprindo ordens.
Ainda dormiam tudo direitinho e nunca se revoltavam.
É o curral escravista mais maravilhoso que alguém já criou!
Melhor que isso só se fosse ovelhas, ovelhas esperando para o abate.
Que lugar maravilhoso que eram essas missões, ou reduções jesuíticas guaranis.
Especialmente pelo ponto de vista daqueles que queriam escravizá-los.
Sim, os piratas do sertão; os bandeirantes paulistas.
Os homens que destruíram as missões guaranis.
Venha conhecer essa história tremendamente trágica de um jeito que nunca te contaram.
"Risca, risca!
Risca do mapa essas missões comunistas!".
Bom, o lugar chamava "república comunista cristã dos guaranis"...
Pô, já tendo nome comunista, já tem que ser riscado do mapa mesmo, né, cara!
Ai, ai, trágico anacronismo, né, porque nem a palavra "república" praticamente existia,
comunismo menos ainda.
Mas agora, o objetivo dos sertanistas de São Paulo era exatamente esse: riscar do mapa
as missões jesuíticas.
E foi isso que aconteceu.
E é isso que eu vou te contar, nesse CENTÉSIMO, ÉPICO episódio do "Não Vai Cair no ENEM".
Quem diria que esse programa chegaria a cem episódios?
Vamos por o número aqui: CEM, CEM, CEM!
Eu preferiria que fosse "cem" com "s", né, mas infelizmente é "cem" com "c".
Porque eu preferiria nem estar fazendo isso!
Mas eu tô.
E na hora que eu faço eu até gosto.
Então, cara, essa história não é que eu goste, mas essa história é incrível que
ela nunca nos tenha sido contada, né.
Essa história realmente é que tinha que cair no ENEM.
Essa é uma história que todos nós tínhamos que conhecer.
Porque cara, a história não se divide entre bons e maus, entre mocinhos e bandidos...
Mas nesse caso específico, o lado de lá, o lado que destruiu as missões, sim, é o
lado VILÃO.
Não tem outra interpretação.
A história é complexa, a história é múltipla, a história é quase furta-cor, né, a história
é camaleônica.
Além de tudo, se diz que o passado está sempre mudando.
É, o passado está sempre mudando porque ele depende das interpretações do presente.
Como o presente está sempre mudando, você interpreta o passado de formas diferentes.
Que bela lição, já, nesse centésimo episódio!
Só que, nesse caso específico, só tem um lado.
Essa devastação imposta ao primeiro período das missões, o período que vai de 1609 a
1641, não tem desculpa.
Bom, na sua origem, São Paulo já se chamava Porto dos Escravos.
São Paulo nasceu a partir de dois personagens inacreditáveis e misteriosos da história
do Brasil que, algum dia, vão acabar ganhando um episódio aqui.
João Ramalho, o paulista primordial, um cara que apareceu em São Paulo ali em 1508, que
ninguém sabe se era um náufrago, se era um degredado, se era um cara que tinha vindo
de outro lugar do Brasil colônia e chegado ali...
Provavelmente era um náufrago, ou talvez um degredado, que chegou em SP em 1508 e que
logo criou um exército particular que alguns dizem que chegou a ter três mil nativos indígenas.
E, com esses nativos, escravizava vários outros nativos e vendia eles pra expedições
que passavam ali.
Além do João Ramalho, cara, tem o cara que, olha tchê, falando sério, na minha opinião,
é o cara mais misterioso da história do Brasil.
Algum dia ele vai ter um episódio.
Se chama Bacharel de Cananéia.
Ninguém sabe quem foi o Bacharel de Cananéia de verdade e quando ele chegou ao Brasil.
Tem gente que diz que ele chegou ao Brasil em 1498.
Isso, mil quatrocentos e noventa e oito.
Dois anos antes do descobrimento oficial do Brasil, portanto.
Outros dizem que chegou em 1501, trazido pela expedição da qual fazia parte Américo Vespúcio.
O fato é que, em 1532, quando Martim Afonso de Sousa chega em Cananéia, já encontra
esse cara senhor de várias... cara, eu sempre associo ele com Marlon Brando em "Apocalypse
Now", o coronel Curtis.
O cara morava lá, tinha um monte de mulher dele, tinha um monte de índio servindo ele
e tinha um monte de escravo.
Por causa disso, dessas duas figuras, São Vicente era conhecido como Porto dos Escravos.
Já em 1508, 1510.
Portanto a origem de SP está ligada a escravização dos índios.
Só que isso daria uma grande, uma enorme guinada a partir de 1591, quando o Brasil...
Portugal e Espanha já estavam unidos sob a tal União Ibérica, já falei dez vezes
aqui, blá blá blá… E chega um governador geral pro Brasil chamado
Dom Francisco de Sousa.
É esse cara que cria essas milícias paramilitares.
De São Paulo, já saíam expedições escravistas, expedições exploradoras, pra toda região
em torno de SP, desde 1530, 1532...
Mas esse cara que militariza essas incursões!
O Dom Francisco de Sousa dá roteiros fixos, estabelece o número de pessoas que deveriam
fazer parte da tropa e até capelães... capelões... padres iam junto nessas expedições que serviam,
basicamente, pra escravizar indígenas.
É inacreditável que quando se iniciou o estudo do "bandeirismo", por volta dos anos
20 do século 20, 1920, 1930, 1940, alguns historiadores, ou com um cinismo gigantesco
ou com deliberada ingenuidade, estabelecem a primeira fase do bandeirismo como chamada
"bandeirismo defensivo".
Hahaha!
Que os paulistas teriam criado essas milícias paramilitares, parecidas com as milícias
que hoje assolam e assombram o Rio de Janeiro.. teriam criado essas milícias pra "proteger"
a vila dos ataques indígenas.
De fato, tinha havido um ataque indígena incrível em São Paulo em 1562, que algum
dia eu também te conto essa história que é incrível que nunca nos contem.
São Paulo quase foi destr... a nascente de São Paulo quase foi destruída por um ataque
coligado de indígenas que saíram do Rio de Janeiro e do oeste do atual estado de São
Paulo e atacaram a nascente de vila de São Paulo!
Que escapou por um triz!
E houve outros ataques em 1570 e tal.
Então, os historiadores dizem: "não, aí os paulistas criaram o 'bandeirismo defensivo'".
Há!
Os ataques se davam justamente porque eles tinham começado a escravizar os caras, como
eu falei, desde 1508!
Só que daí cara, a partir de 1590, 91, com esse Dom Francisco de Sousa, aí até os historiadores
mais cara de pau são obrigados a admitir que se inicia o "bandeirismo ofensivo".
Hahaha... bota ofensivo nisso, né.
Os paulistas saem dessas trilhas que saíam todas do coração de São Paulo e começam
a escravizar tudo que é índio que encontram ao redor.
Só que daí é o seguinte, cara...
Você já ouviu no episódio anterior, no nonagésimo nono episódio do NVCNE, se não
viu vai lá correndo ver, para esse agora, vai lá ver aquele e depois volta pra esse...
Esse é o centésimo, mané!
Esse é o CENTÉSIMO, maravilhoso episódio do Não Vai Cair no ENEM!
No nonagésimo, você já viu que, a partir de 1609, os jesuítas, partindo do Paraguai,
começaram a estabelecer as missões no Guayrá, né, que é hoje o oeste do Paraná, no Tape,
que é o oeste do Rio Grande do Sul, e no Itatim, que é no sul do Mato Grosso do Sul,
né.
A questão é que o Guayrá, a chamada "florida cristandade", que tinha 13 reduções com
cerca de cinco mil índios afeitos a autoridade, ao trabalho disciplinado, ao trabalho agrícola,
ficava a 40, 50 dias de marcha de São Paulo.
E São Paulo é uma raça de caminhantes, os caras sempre foram caminhantes!
Há relatos do governador Tomé de Sousa, em 1556, que ele encontrou o João Ramalho
e disse que o João Ramalho caminhava NOVENTA QUILÔMETROS POR DIA!
Já veio aqui uns comentários.. não que eu leia, mas me disseram, "ah, é
impossível caminhar 90km por dia"...
Tá, talvez ele não caminhasse todos os dias 90km, mas com certeza algumas vezes ele caminhou
90km.
E 40, 30 quilômetros, esses bandeirantes paulistas, esses sertanistas paulistas, caminhavam
FÁCIL!
E eram cheios de trilhas, né.
Eram as chamadas "peabirus", né.
Peabiru é a principal trilha, mas todas elas se chamavam "apés", né.
"Apé" não é de "a pé", "apé" é uma palavra tupi que quer dizer "caminho".
E essas trilhas, eles as percorriam em fila indiana.
É, fila indiana porque os índios andavam, os índios brasileiros, os nativos-brasileiros,
andavam um atrás do outro.
Porque as veredas, as chamadas "veredas de pé posto"...
O Sérgio Buarque de Holanda usa muito essa expressão, "vereda de pé posto" pras trilhas
estreitas, meras picadas na mata, menos o Peabiru, o principal Peabiru, que era mais
largo... e eles andavam em fila.
E os bandeirantes, os sertanistas paulistas, eles incorporaram muitos e muitos dos costumes
nativos dos tupis, dos tupiniquins, basicamente dos tupiniquins de SP.
Então, eles aprenderam a andar na mata com um senso de orientação inacreditável e
se alimentando de palmitos (quase extinguiram os palmiteiros), de mel (e dizem que comiam
mel com a abelha e tudo!
Haha, paulista macho, meu chapa!), de mel, palmito, e depois eles passaram, ao longo
dessas trilhas, a plantar mandioca e milho.
Então, quando eles chegavam, na incursão seguinte, já tinha crescido o milho, já
tinha crescido a mandioca e eles comiam.
Essas expedições se movimentavam numa média de 15 a 25km por dia: era a marcha da caminhada
deles.
Eles saíam logo ao amanhecer, assim que o sol raiava, eles se punham em marcha e, por
volta das quatro da tarde paravam, montavam acampamento e no dia seguinte seguiam.
Essas expedições eram muito parecidas, todas elas.
Os líderes eram paulistas, sertanistas de São Paulo, mas eles eram uma minoria.
Eles eram tipo assim, 15, 20, no máximo 30, com exceções.
Depois, vinham os tais mamelucos, filhos de pai branco, de ventre indígena, de mãe indígena,
que odiaavam os índios, cara.
Odiavam!
Eles eram super afim de escravizar e de matar índio.
Esses eram em torno de mil, né.
E às vezes, cara, iam tipo dois mil índios puros.
Índios tupis ou temiminós ou guarulhos que eram tribos que viviam ao redor de São Paulo
e já tinham sido cooptadas pelos próprios paulistas e que escravizavam as outras tribos.
Essas bandeiras se punham em movimento e iam escravizando os índios ao redor de SP.
Só que como disse brilhantemente o Capistrano de Abreu, ele pergunta: "por que aventurar-se
entre gente boçal e rara, falando línguas travas e incompreensíveis se, perto de SP,
demoravam aldeamentos numerosos iniciados na arte da paz, afeitos ao julgo da autoridade?".
Exatamente, porque os jesuítas, ao criarem essas missões, acabaram criando um curral
escravista.
Os bandeirantes de SP olharam e disseram "olha ali cara, um monte de índio, tudo morando
numas casinhas.
Nós vamos lá escravizar esses caras, cara!".
E como já havia essa União Ibérica e os limites entre Portugal e Espanha estavam difusos
e os paulistas juravam que todo o oeste do Paraná pertencia a eles... porque eles, de
certa forma, tinham mesmo sido os primeiros a chegarem lá nessas missões... eles resolveram
iniciar uma campanha pra conquistar essas missões.
E as primeiras missões que eles atacam são justamente as missões do Guayrá...
Porque em 40 dias de marcha eles chegavam lá.
Quarenta dias era um passeio na praia pra paulista.
Então, em agosto...
Se sabe o dia!
Acho que foi no dia 8 de agosto de 1627, um cara chamado Manoel Preto, e outro, que eu
tinha ouvido falar, chamado Raposo Tavares, montam uma super, uma hiper bandeira, com
69 paulistas brancos (que era um muito ter um número tão grande assim de paulistas),
900 mamelucos e dois mil índios, muito provavelmente temiminós.
Os temiminós mereciam um episódio porque eles eram aqui da ilha, onde hoje é a Ilha
do Governador no Rio de Janeiro.
Eram índios cariocas inimigos dos Tamoios.
Todo o RJ era um território Tamoio com uma única enclave, como se fosse um enclave gaulês,
de temiminó.
Os temiminó eram aliados dos portugueses desde 1560, da conquista do RJ, e os tamoios
tinham sido aliados dos franceses e, por isso, tinham sido extintos.
Aí, os temiminós já estavam a essas alturas morando lá.