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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 6. A cor dos faraós - Part 1

6. A cor dos faraós - Part 1

Em 1789, mais de 30 anos antes da independência do Brasil, os escravizados de um engenho no

sul da Bahia mataram o mestre de açúcar.

Eu até falei sobre essa função no episódio passado.

Basicamente era o responsável por supervisionar a parte do beneficiamento do açúcar, da

transformação do melaço em açúcar refinado.

Depois de matar o mestre de açúcar, os escravizados foram até o dono do engenho e apresentaram

um documento.

A gente já falou disso também, mas era muito raro que qualquer pessoa soubesse ler e escrever

no Brasil naquela época.

Menos ainda pessoas escravizadas, por causa das proibições e interdições.

Mas não era impossível.

E os trabalhadores escreveram assim.

Meu senhor, nós queremos paz e não queremos guerra.

Se o meu senhor quiser paz, há de ser nessa conformidade.

Ou seja, a paz teria que ser nos termos deles.

Daí eles fizeram uma série de exigências por melhores condições de trabalho.

Queriam ter livres tanto às sextas-feiras quanto os sábados para que pudessem cultivar

as próprias roças.

E diziam que não aceitavam os feitores atuais do engenho.

Feitor era uma outra função, era o supervisor geral de toda a operação.

Os trabalhadores exigiam que fosse feita uma eleição para escolher os novos feitores.

E eles terminavam assim o documento.

Poderemos brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos, sem que nos impeçam

e nem que seja preciso pedir licença.

E se brincar e cantar tem mais significado do que parece?

E daqui a pouco a gente chega lá.

Isso tudo foi no engenho de Santana, que ficava em Ilhéus, no sul da Bahia.

E por causa disso, o documento ficou conhecido como o Tratado do Engenho de Santana.

Olha só, o terreiro Matamba Tomensineto é fundado em 1885 em uma localidade que fica

na zona rural da cidade de Ilhéus, no engenho de Santana, onde houve uma revolução escrava

que se constituiu um documento.

Dizem que é o primeiro tratado trabalhista entre patrão e empregados, onde esses escravos

eles pontuaram nessa carta algumas das suas reivindicações.

O dono do engenho acabou pedindo ajuda para o juiz do distrito, que enviou mais de 80

homens armados para conter a revolta.

Aí lá pela época da Guerra da Independência, a fazenda já estava na mão de outro senhor

e teve uma outra revolta dos escravizados do engenho de Santana.

Os trabalhadores mantiveram o controle por mais três anos.

Só em 1924 que as autoridades conseguiram retomar o engenho e os revoltosos montaram

quilombos nas matas ali por perto.

E foi a partir dos remanescentes desses quilombos que nasceu esse terreiro que a gente ouviu

há pouco, lá em Ilhéus.

Aqui também minha mãe é a sala da consulta dela, onde ela recebe os clientes dela também.

Aí aqui a camarinha onde recolhe o sujeito de santo.

Aqui o quarto dos tatas, das macotas.

Aí nós temos aqui a minha nome é Gilmário Rodrigues Santos.

Esse é um nome que eu fui batizado na igreja católica, mas eu faço parte também da religião

do candomblé.

Sou membro do terreiro Matamba Tomesineto, o qual eu recebi o nome de Tata Luanda Encosse.

Eu sou tata cambondo aqui do terreiro Matamba Tomesineto, na cidade de Ilhéus, no estado

da Bahia, no sul da Bahia.

O terreiro Matamba Tomesineto é referência na cidade por ser um dos terreiros mais velhos.

Então quando acontece algum tipo de caso desse de intolerância religiosa, de desrespeito,

essas pessoas procuram a gente naturalmente.

Nós tivemos vários casos aqui em Ilhéus, vários casos.

Um desses casos acabou sendo com parentes dele.

O meu tio, que é casado com Imbialê Neuzira, filha de santo da minha avó.

Boa parte desses meus primos, que não é daqui da comunidade, boa parte deles são

evangélicos.

E a mãe desses primos, a mãe consanguínea deles, é uma Yalorixá, é uma mãe de santo.

E aí meu tio faleceu, ele não era iniciado, mas ele ajudava a Neuzira, Imbialê, nas obrigações

e tudo.

E aí a gente foi pro funeral dele.

Chegou lá, tinha muitos evangélicos lá, pessoal da igreja, dos filhos, tudo.

Quando chegou no seu acupuntamento, o encosso, o Ogum de Neuzira, Imbialê, que era esposa

de meu tio, pegou, manifestou nela.

Na hora de arriar o cachelo na cova, o Ogum virou, pegou ela.

O Orixá da Neuzira se manifestou nela, queria se despedir do marido da Neuzira, que tinha

falecido.

E aí esses evangélicos começaram tentando pegar o Ogum.

Sai, Satanás, sai seu diabo, tira ele, tá repreendido.

Porque isso gerou aquela confusão.

E esse tipo de confusão tem acontecido cada vez mais no Brasil.

A gente volta falando de um pastor evangélico que foi autuado por intolerância religiosa

em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, depois de gravar um vídeo mostrando que destruiu

imagens sagradas.

Integrantes da rede de articulação da Caminhada dos Terreiros fizeram protesto hoje à tarde

no Recife.

A manifestação foi contra um pastor evangélico que divulgou um vídeo nas redes sociais com

agressões às religiões de matrizes africanas.

O Bahia Meio Dia Regional começa falando sobre uma denúncia de intolerância religiosa

aqui em Vitória da Conquista.

Uma mãe de santo acusa um pastor evangélico de agressão e intolerância.

O caso foi parar na polícia.

Nos últimos anos, os casos de intolerância religiosa, ou mesmo de terrorismo contra religiões

de matriz africana, tem aumentado, tem escalado.

Quando a gente vê esse tipo de caso hoje em dia, tem um grupo bem específico que costuma

estar por trás.

Um grupo de bíblia na mão.

Uma menina de 11 anos foi atingida na cabeça por uma pedra a caminho para um culto de candomblé

no Rio de Janeiro.

Segundo testemunhas, dois homens que estavam naquele ponto de ônibus do outro lado da

rua começaram então a ofender o grupo, que preferiu não reagir às provocações.

Eles estavam bem vestidos, com bíblias na mão.

Aí a primeira pergunta que eu faço para o senhor nesse sentido é, existe liberdade

religiosa no Brasil hoje?

Depende para quem.

Este é o Ivanir dos Santos, que é professor, pesquisador e ativista na luta contra a intolerância

religiosa.

Ele também é babalaú.

O processo de entender a liberdade religiosa no Brasil, temos que entender o processo histórico

do país, né?

Nele nós temos um país que, durante a colônia e o império, a igreja católica fez parte

do Estado.

E está aqui uma questão bem importante.

É inegável que boa parte dos ataques a religiões de matriz africana hoje sejam cometidos por

alguns evangélicos, principalmente os neopentecostais.

E a gente vai tratar disso em detalhes com toda a complexidade que o assunto exige.

Mas se a gente pegar a história do Brasil, todos os anos, desde a colonização, passando

pelo império e a república, na maior parte desses anos, desses séculos, teve um outro

grupo promovendo esses ataques.

Nesse período não tinha pra ninguém, a não ser a igreja católica.

Então as manifestações, naquele primeiro momento, dos escravizados e também dos indígenas,

não tinham liberdade.

O que tinha era a conversão, a catequese forçada desses grupos.

A igreja católica foi a principal sócia de Portugal na empreitada da colonização,

na empreitada da escravidão, da exploração de mentes e corpos negros por mais de três

séculos, do genocídio desse povo.

A principal sócia.

E durante todos esses anos, a igreja católica foi a principal responsável por perseguir

qualquer manifestação religiosa que não fosse a do catolicismo.

A igreja católica desenvolveu uma justificativa ideológica e política de liberdade.

A igreja católica desenvolveu uma justificativa ideológica e teológica para a barbárie

que foi a escravidão.

Algumas dessas ideias permanecem até hoje e dão base não só para a intolerância

religiosa, para o terrorismo contra a religião de matriz africana, mas dão base para o próprio

racismo.

Eu sou o Tiago Rogero e este é o podcast do Projeto Quirino, produzido pela Rádio

Novelo.

Episódio 6 – Acordos Faraós

Até onde se sabe, a primeira viagem de tráfico negreiro de escravizados foi lá por volta

de 1440, quando um português, a mando da coroa portuguesa, foi até a região do Rio

do Ouro, no continente africano, para comprar azeite e pele de leão marinho.

Daí esse português sequestrou 12 africanos e levou para Portugal.

Uns três anos depois teve o primeiro leilão de escravizados em Portugal.

E aí já eram mais de 200 pessoas, entre elas crianças.

E é sempre bom lembrar que não foi nesse momento que a escravidão começou, que ela

foi inventada.

A escravidão já existia e há muito tempo.

Tinha escravizado na Grécia Antiga, por exemplo.

A própria palavra escravo, e fica mais fácil quando a gente pensa nela em inglês, slave,

vem do latim slavos, que é uma referência aos eslavos que por muito tempo foram escravizados.

E o povo eslavo é branco.

É que havia muitos motivos para se escravizar uma pessoa.

Podia ser como resultado de uma guerra, por exemplo, ou por dívida.

Mas não se escravizava alguém só por ser de determinada raça, muito menos só por

ser negro.

Até porque essa ideia de quem é negro e quem não é, é uma ideia criada depois,

justamente para justificar essa nova forma de escravidão que surge a partir do momento

em que Portugal começa a expandir o seu império.

Uma forma mercantil, em que a pessoa escravizada se transforma em mercadoria, e na mais valiosa

e lucrativa mercadoria de todas.

Quem começa com isso é Portugal.

Portugal e a Igreja Católica.

Porque a Igreja é quem dá autorização para isso.

A Igreja deu subsídio moral e ideológico para que a coroa portuguesa escravizasse os

africanos.

Pouco depois desse primeiro leilão de escravizados, o Papa publicou uma bula que os historiadores

chamam de a Carta Régia do Imperialismo Português.

E lá ele autorizava a escravização dos africanos.

A desculpa era, a escravidão serviria para salvar a alma deles, porque quem sequestrava

estaria convertendo aquelas pessoas para o cristianismo.

Mas eu queria que a gente tentasse pensar no continente africano antes de tudo isso.

Bom, meu nome é Fernanda Tomaz, sou professora de História da África da Universidade Federal

de Juiz de Fora.

Pensar o continente africano antes do tráfico transatlântico, penso em diversidade.

Porque eram povos diferentes, não eram irmãos, sabe?

Esse papo é nosso, eram os irmãos.

A ideia de África nem existia.

Essa ideia de África era puxada pelos europeus.

Exatamente com esse contato ao longo do tráfico de escravizados, depois com o colonialismo,

e aí sim define o outro como um continente africano.

Não é essa identidade de ser africano não, o cara era bacongo, o outro era ovibundo,

sei lá, o outro era macua, maconde, alçá, entende?

Em termos culturais, a gente está falando de um continente com mais de 30 milhões de

quilômetros quadrados, um continente com dimensões gigantescas, que hoje tem cerca

de 2 mil povos.

Mesmo sabendo da complexidade que é tentar pensar em definir uma religiosidade num continente

tão diverso, com povos tão distintos, eu perguntei pra Fernanda se haveria elementos

em comum entre boa parte dessas diferentes culturas.

Primeira coisa, Tiago, é a gente ter noção de que é muito da nossa sociedade separar

sagrado e profano.

E eu não sei nem se o termo religião daria conta pra pensar nessas práticas espirituais

do continente africano, das sociedades africanas.

Mas acho que o primeiro ponto a pensar é que não há uma separação, o cotidiano está

mergulhado em espiritualidade.

Pensando na linha do deserto do Saara pra baixo, é muito comum o culto aos ancestrais

na grande maioria das sociedades africanas.

O culto aos ancestrais.

Eu estou falando de sociedades em que o pertencimento histórico, o pertencimento num território

tem a ver com as suas heranças na relação de parentes, as suas heranças na linhagem.

Ou seja, é quem na verdade cuidou de você, é quem trouxe você pro mundo, é que na

verdade um dia ele vai ser o mais velho e um dia ele vai ser o ancestral.

E era uma relação não só com quem veio antes, mas com o território também.

Tem um caso, era um jornalista conhecido, lutou pra independência de Moçambique, enfim,

e que não tem o digno pro pai, na concepção dele, e enterrou no cemitério da cidade.

Passaram-se 20 anos, ele teve AVC, vários problemas, inclusive profissionais.

Ele procurou todos os meios, desde o cuidado físico, ia ao médico, enfim, mas outras

coisas acontecendo que não tinha explicação.

E aí ele procurou um curandeiro.

E aí o curandeiro disse pra ele, olha, o seu pai quer falar com você, você precisa

jogar os oráculos pra você saber o que o seu pai quer falar com você.

Aí ele não acreditou, né?

Eu sou homem da ciência, vou pensar nisso?

Daí que ele descobriu, o pai dele tinha sido enterrado no cemitério da cidade e ele queria

ser enterrado na terra onde estavam os avós, os antepassados, os ancestrais dele.

E aí ele faz uma ação das ossadas, transporta tudo para Iambane, lá pra terra onde estavam

os ancestrais.

E aí teve todo um ritual, enfim, né?

Após o ritual, a vida dele voltou à normalidade, entende?

Tudo voltou à normalidade.

Tem uma palavra de origem banto, kalunga, e ela quer dizer um monte de coisa.

Um significado bem comum é o de morte, além.

Daí eu já tinha lido que pra muitos povos africanos que foram escravizados, a travessia

pelo mar, aqueles dias todos no porão de um navio negreiro, aquilo era encarado como

uma morte mesmo.

Porque o mar era chamado de Kalunga Grande.

Mas eu entendi errado.

A morte, em muitas sociedades africanas, ela simboliza uma outra coisa.

A morte não é um problema, sabe?

A morte não é obscura.

A morte é simplesmente uma passagem nessa existência.

O mundo vivo depende do mundo dos mortos e vice-versa, sabe?

Porque o mundo dos mortos é o que me dá sentido, sabe?

Dá sentido pra minha existência.

A morte, ela só simboliza uma passagem, que é pra ir pra esse outro mundo.

A travessia no navio negreiro não era a morte.

A travessia era algo pior.

Porque, na verdade, corta seu eixo com seu território.

O mar simboliza esse tempo de ida que não tem volta.

E esse mar é o que corta a sua relação com a sua linhagem, com o seu território

de onde você veio.

E corta a sua relação com a sua história.

Porque ainda que você leve seus ancestrais contigo, a relação não é mesmo do lugar

em que você vive, porque você largou seu eixo, sabe?

Esse indivíduo que tem toda uma relação de curatividade, ele passa a ser individualizado.

E eu acho que essa individualização é quando esses jundidos são comprados na Costa e eles

atravessam.

Quando eles atravessam, eles estão imergindo em uma outra cultura e numa outra posição

social.

Ele passa a ser mercadoria, ele passa a ser escravo.

A morte se dá num processo e é num processo de travessia.

Mas é uma morte que é feita a partir do desenraizamento.

Essa morte da travessia é muito maior do que a morte física.

E sabe quem também participava do tráfico negreiro?

A igreja.

Em 1558, tinham mais de 10 mil pessoas escravizadas trabalhando em sítios e fazendas dos jesuítas

em Angola.

Daí começaram umas críticas dentro da própria igreja, não à escravidão, mas à participação

deles no tráfico.

E o padre responsável pela missão respondeu que seria impossível sustentar a operação

sem o tráfico negreiro.

Pensando aqui no Brasil agora, a igreja ganhava por cada escravizado que fosse batizado.

E era lei, todo escravizado deveria ser batizado.

E a igreja já tinha tentado justificar a escravidão com aquela desculpa de salvar

almas.

Pra manter de pé o regime escravocrata, a coisa foi ficando ainda mais complexa.

A igreja criou toda uma justificativa ideológica e teológica.

Ela tinha, por exemplo, a ideia de que os africanos deveriam ser escravizados porque

eles teriam sido amaldiçoados.

E havia toda uma pedagogia da escravidão.

A igreja pregava que os senhores tinham nascido para serem senhores e os escravizados para

serem escravizados.

Um dos principais nomes dessa pedagogia era o padre Antônio Vieira, que até hoje dá

nome a uma porção de coisa no Brasil.

Eu já morei numa rua Antônio Vieira, por exemplo.

Ele dizia que o trabalho no engenho era a cruz e que não há trabalho nem gênero de

vida no mundo mais parecido com a paixão de Cristo do que o trabalho escravo nos engenhos.

A religião católica não era só a oficial, era a única permitida.

As manifestações religiosas que não fossem católicas eram classificadas como heresia,

feitiçaria, coisa do demônio.

Aí veio a independência, o Brasil se separou da coroa portuguesa, mas estava lá na Constituição

de 24 que durou até o fim do império.

A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império.

E tinha mais esse trecho.

Todas as outras religiões serão permitidas, e eu chamo atenção para isso, com seu culto

doméstico ou particular em casa para isso destinada.

Mas essa casa não poderia parecer um templo do lado de fora.

E a Constituição também dizia que ninguém pode ser perseguido por religião, uma vez

que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública.

E você sabe o que sempre foi uma ofensa a moral pública no Brasil, né?

Qualquer traço de africanidade, como as religiões de matriz africana.

Embora carreguem elementos seculares e até milenares, as religiões de matriz africana

que nós conhecemos hoje são relativamente recentes, a partir da segunda metade do século

19.

E são várias, né?

Tem as mais conhecidas, candomblé e umbanda, mas também tem o tambor de mina e o terecô

no Maranhão, o xangô e o xambá em Pernambuco e Alagoas, a cabula no Espírito Santo, o

batuque no Rio Grande do Sul, o babassué no Pará, a quimbanda no Rio e em São Paulo,

o omolocô em Minas, no Rio e em São Paulo.

São religiões que nasceram aqui no Brasil, com elementos de diferentes sociedades e culturas

africanas, mas que nasceram no Brasil, são afro-brasileiras.

E não é que não havia essa religiosidade aqui antes do século 19.

Apesar da religião oficial imposta pelo Estado, pessoas negras nunca deixaram de professar

a própria fé.

E tinha muito senhor que, no interior das fazendas, permitia isso para não provocar

uma revolta.

Lembra do tratado do Engenho de Santana, quando os escravizados exigiram poder brincar, folgar

e cantar sem pedir licença?

Isso podia tanto significar o puro e simples lazer quanto religiosidade também.

Chamar de brincadeira era uma forma de proteger esses ritos religiosos.

Era uma forma de resistência.

Com o passar dos anos, até por causa do número cada vez maior de pessoas negras que estavam

conquistando a própria liberdade, foram surgindo mais casas, mais terreiros.

Daí olha esse caso de 1849, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Uma mulher negra fez um requerimento para o chefe de polícia.

Ela fez um pedido.

E quem vai contar aqui é o historiador e professor Paulo Moreira.

Ela se apresenta para o delegado de uma determinada maneira, se apresentando como Maria José

Preta Forra, Rainha Ginga.

Rainha Ginga.

De nação angola, com predomínio sobre as outras nações da costa da África.

E ela reclama de que ela tinha uma licença para brincar com as pessoas da sua nação

E ela pedia então que essa licença fosse renovada.

E aí é interessante a forma como ela se apresenta e como ela tenta disfarçar aquela

manifestação coletiva, aquela manifestação comunitária, como brincadeiras.

E aí a polícia fica toda ressabiada, porque evidentemente, mesmo ela sendo Forra, a presença

dessa mulher e a liderança que ela tinha nessa comunitária, atemorizava aquela sociedade

branca de uma forma que essa sociedade, durante muito tempo, ficou pensando se renovaria

a sua licença.

A licença tinha sido caçada.

E aí então, num determinado momento, a licença dela é renovada, desde que as manifestações,

as festas, os brinquedos fossem feitas extra-muros da cidade.

Ou naquilo que se chamava na época da Varsia de Porto Alegre.

Lembra do nome que ela usou quando fez o requerimento para o chefe de polícia?

A maneira como ela se apresenta como Rainha Ginga não é uma coisa fortuita, não é

uma coisa por acaso.

Ela certamente escolheu aquilo ali.

Talvez ali nesse momento ela estivesse dando uma intimada até no delegado, como se ela

estivesse dizendo, olha, veja bem com quem você está falando, eu sou Rainha Ginga,

eu sou uma mulher que representa várias nações da costa da África.

A Rainha Ginga, como a gente sabe, é uma mulher que realmente existiu, se trata de

Nzinga Mbund, uma mulher que viveu ali de 1582 a 1663, nunca pisou no Brasil, foi uma

rainha no reino do Dongo e reino de Matamba, uma pessoa extremamente importante.

Nos anos em que ela esteve no poder, a Rainha Nzinga conseguiu barrar o avanço de Portugal

sobre o reino dela.

E essa presença da rainha nessa região congo-angola marcou tanto a memória dessas pessoas que

foram trazidas compulsoriamente para o Brasil, que Rainha Nzinga se tornou uma distinção,

se tornou um elemento de prestígio.

Quando a Maria José diz que ela é Rainha Nzinga, ela estava chamando para si uma certa

realeza, mas também uma representatividade ligada à sua ancestralidade.

ANCESTRALIDADE

No Rio Grande do Sul, assim como no Brasil, de uma forma geral, a gente tem uma série

de territórios negros.

E nesses territórios, existem uma série de festividades que dialogam com essa memória

da África.

E aí, nessas manifestações atualmente, nesses territórios negros, a gente ainda

tem a presença da Rainha Nzinga e do Rei Congo.

Tu tem Rainha Nzinga e Rei Congo dentro das Irmandades, isso que a gente chama de afro-catolicismo.

AS IRMANDADES NEGRAS DENTRO DA IGREJA CATÓLICA

As Irmandades Negras é considerada a primeira forma de associativismo negro que surge no Brasil.

Este é o historiador e professor Petrônio Domingues.

O associativismo negro foram as formas encontradas pela população negra de adaptação a esse

novo continente, as Américas.

Essa população desenvolveu várias formas, várias estratégias de resistência.

AS IRMANDADES NEGRAS REMONTAM AO PERÍODO COLONIAL

As Irmandades Negras remontam ao período colonial criadas inicialmente pela iniciativa

dessa população escravizada que buscou seu espaço na Igreja Católica.

Um lugar em que essa população escravizada pudesse professar sua fé.

A Igreja tolerava e até fomentava o surgimento dessas Irmandades Negras que precisavam de

autorização para funcionar.

Do ponto de vista da Igreja, não deixava de ser uma forma de controle e de catequização.

Isso é pelo olhar da Igreja Católica, porque do ponto de vista dos escravizados, as Irmandades

Negras eram um espaço de resistência.

Era um espaço em que eles se sentiam fortalecidos, se sentiam unidos e fortes em função dessa

união coletiva.

Porque era um espaço em que você iria não só ter um espaço de culto, um espaço em

que você professasse sua fé, um espaço para você poder fazer sua prece, você cultuar

o seu santo, mas também era um espaço em que você encontrasse a sua própria esposa

e também era um espaço em que você encontrava os seus, seus irmãos, seus irmãos de cor.

Era um espaço em que essa população de cor se unia, se fortalecia do ponto de vista

da sua identidade e era um espaço em que também se articulava a luta pela conquista

da liberdade.

Então as Irmandades Negras foram responsáveis por comprar muitas alforrias.

As Irmandades também construíram igrejas, porque os negros, mesmo que eram livres,

não eram bem aceitos nas igrejas dos brancos.

Os africanos e seus descendentes acabaram criando um catolicismo popular, muito permeado

pelo sincretismo, pela mistura de elementos com as religiões de matrizes indígena e

africana.

E houve muitos casos de seguidores de religiões de matriz africana que também faziam parte

de Irmandades católicas e não só de seguidores, mas também de líderes dessas religiões.

A mãe Aninha, uma das mais importantes mães de santo da nossa história, que nasceu em

1869 em Salvador, fez parte de duas Irmandades católicas.

E além da compra de alforrias, as Irmandades garantiam também uma boa morte, um enterro

digno, com direito a funeral, missa.

Quando João Cândido, o almirante negro, foi julgado pela Marinha do Brasil por se

revoltar contra os castigos corporais, na Revolta da Chibata, ele e os outros marinheiros

que sobreviveram, os que não foram assassinados pela Marinha, foram defendidos por advogados

contratados pela Irmandade do Rio.

Isso tudo foi já na República, porque depois da Abolição e da República, as Irmandades

continuaram a existir.

Assim como continuou a perseguição às religiões de matriz africana.

Quando é proclamada a República, é interessante observar que a Abolição se dá em 88, a

República vem em 89 e em 90 nasce primeiro o código criminal.

Aqui de novo o Babalaô Ivanir dos Santos.

O que ele está contando é que em 1890, depois do golpe que derrubou o Império e instituiu

a República, o governo provisório publicou um decreto que tornou o Brasil, pela primeira

vez, um Estado laico.

Ao menos na teoria.

Mas ainda naquele ano, veio o que?

6. A cor dos faraós - Part 1 6. Die Farbe der Pharaonen - Teil 1 6. The color of the pharaohs - Part 1 6. El color de los faraones - Parte 1 6. La couleur des pharaons - Partie 1 6.ファラオの色 - その1 6. Faraonernas färg - Del 1 6. Firavunların rengi - Bölüm 1 6. Колір фараонів - Частина 1

Em 1789, mais de 30 anos antes da independência do Brasil, os escravizados de um engenho no

sul da Bahia mataram o mestre de açúcar.

Eu até falei sobre essa função no episódio passado.

Basicamente era o responsável por supervisionar a parte do beneficiamento do açúcar, da

transformação do melaço em açúcar refinado.

Depois de matar o mestre de açúcar, os escravizados foram até o dono do engenho e apresentaram

um documento.

A gente já falou disso também, mas era muito raro que qualquer pessoa soubesse ler e escrever

no Brasil naquela época.

Menos ainda pessoas escravizadas, por causa das proibições e interdições.

Mas não era impossível.

E os trabalhadores escreveram assim.

Meu senhor, nós queremos paz e não queremos guerra.

Se o meu senhor quiser paz, há de ser nessa conformidade.

Ou seja, a paz teria que ser nos termos deles.

Daí eles fizeram uma série de exigências por melhores condições de trabalho.

Queriam ter livres tanto às sextas-feiras quanto os sábados para que pudessem cultivar

as próprias roças.

E diziam que não aceitavam os feitores atuais do engenho.

Feitor era uma outra função, era o supervisor geral de toda a operação.

Os trabalhadores exigiam que fosse feita uma eleição para escolher os novos feitores.

E eles terminavam assim o documento.

Poderemos brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos, sem que nos impeçam

e nem que seja preciso pedir licença.

E se brincar e cantar tem mais significado do que parece?

E daqui a pouco a gente chega lá.

Isso tudo foi no engenho de Santana, que ficava em Ilhéus, no sul da Bahia.

E por causa disso, o documento ficou conhecido como o Tratado do Engenho de Santana.

Olha só, o terreiro Matamba Tomensineto é fundado em 1885 em uma localidade que fica

na zona rural da cidade de Ilhéus, no engenho de Santana, onde houve uma revolução escrava

que se constituiu um documento.

Dizem que é o primeiro tratado trabalhista entre patrão e empregados, onde esses escravos

eles pontuaram nessa carta algumas das suas reivindicações.

O dono do engenho acabou pedindo ajuda para o juiz do distrito, que enviou mais de 80

homens armados para conter a revolta.

Aí lá pela época da Guerra da Independência, a fazenda já estava na mão de outro senhor

e teve uma outra revolta dos escravizados do engenho de Santana.

Os trabalhadores mantiveram o controle por mais três anos.

Só em 1924 que as autoridades conseguiram retomar o engenho e os revoltosos montaram

quilombos nas matas ali por perto.

E foi a partir dos remanescentes desses quilombos que nasceu esse terreiro que a gente ouviu

há pouco, lá em Ilhéus.

Aqui também minha mãe é a sala da consulta dela, onde ela recebe os clientes dela também.

Aí aqui a camarinha onde recolhe o sujeito de santo.

Aqui o quarto dos tatas, das macotas.

Aí nós temos aqui a minha nome é Gilmário Rodrigues Santos.

Esse é um nome que eu fui batizado na igreja católica, mas eu faço parte também da religião

do candomblé.

Sou membro do terreiro Matamba Tomesineto, o qual eu recebi o nome de Tata Luanda Encosse.

Eu sou tata cambondo aqui do terreiro Matamba Tomesineto, na cidade de Ilhéus, no estado

da Bahia, no sul da Bahia.

O terreiro Matamba Tomesineto é referência na cidade por ser um dos terreiros mais velhos.

Então quando acontece algum tipo de caso desse de intolerância religiosa, de desrespeito,

essas pessoas procuram a gente naturalmente.

Nós tivemos vários casos aqui em Ilhéus, vários casos.

Um desses casos acabou sendo com parentes dele.

O meu tio, que é casado com Imbialê Neuzira, filha de santo da minha avó.

Boa parte desses meus primos, que não é daqui da comunidade, boa parte deles são

evangélicos.

E a mãe desses primos, a mãe consanguínea deles, é uma Yalorixá, é uma mãe de santo.

E aí meu tio faleceu, ele não era iniciado, mas ele ajudava a Neuzira, Imbialê, nas obrigações

e tudo.

E aí a gente foi pro funeral dele.

Chegou lá, tinha muitos evangélicos lá, pessoal da igreja, dos filhos, tudo.

Quando chegou no seu acupuntamento, o encosso, o Ogum de Neuzira, Imbialê, que era esposa

de meu tio, pegou, manifestou nela.

Na hora de arriar o cachelo na cova, o Ogum virou, pegou ela.

O Orixá da Neuzira se manifestou nela, queria se despedir do marido da Neuzira, que tinha

falecido.

E aí esses evangélicos começaram tentando pegar o Ogum.

Sai, Satanás, sai seu diabo, tira ele, tá repreendido.

Porque isso gerou aquela confusão.

E esse tipo de confusão tem acontecido cada vez mais no Brasil.

A gente volta falando de um pastor evangélico que foi autuado por intolerância religiosa

em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, depois de gravar um vídeo mostrando que destruiu

imagens sagradas.

Integrantes da rede de articulação da Caminhada dos Terreiros fizeram protesto hoje à tarde

no Recife.

A manifestação foi contra um pastor evangélico que divulgou um vídeo nas redes sociais com

agressões às religiões de matrizes africanas.

O Bahia Meio Dia Regional começa falando sobre uma denúncia de intolerância religiosa

aqui em Vitória da Conquista.

Uma mãe de santo acusa um pastor evangélico de agressão e intolerância.

O caso foi parar na polícia.

Nos últimos anos, os casos de intolerância religiosa, ou mesmo de terrorismo contra religiões

de matriz africana, tem aumentado, tem escalado.

Quando a gente vê esse tipo de caso hoje em dia, tem um grupo bem específico que costuma

estar por trás.

Um grupo de bíblia na mão.

Uma menina de 11 anos foi atingida na cabeça por uma pedra a caminho para um culto de candomblé

no Rio de Janeiro.

Segundo testemunhas, dois homens que estavam naquele ponto de ônibus do outro lado da

rua começaram então a ofender o grupo, que preferiu não reagir às provocações.

Eles estavam bem vestidos, com bíblias na mão.

Aí a primeira pergunta que eu faço para o senhor nesse sentido é, existe liberdade

religiosa no Brasil hoje?

Depende para quem.

Este é o Ivanir dos Santos, que é professor, pesquisador e ativista na luta contra a intolerância

religiosa.

Ele também é babalaú.

O processo de entender a liberdade religiosa no Brasil, temos que entender o processo histórico

do país, né?

Nele nós temos um país que, durante a colônia e o império, a igreja católica fez parte

do Estado.

E está aqui uma questão bem importante.

É inegável que boa parte dos ataques a religiões de matriz africana hoje sejam cometidos por

alguns evangélicos, principalmente os neopentecostais.

E a gente vai tratar disso em detalhes com toda a complexidade que o assunto exige.

Mas se a gente pegar a história do Brasil, todos os anos, desde a colonização, passando

pelo império e a república, na maior parte desses anos, desses séculos, teve um outro

grupo promovendo esses ataques.

Nesse período não tinha pra ninguém, a não ser a igreja católica.

Então as manifestações, naquele primeiro momento, dos escravizados e também dos indígenas,

não tinham liberdade.

O que tinha era a conversão, a catequese forçada desses grupos.

A igreja católica foi a principal sócia de Portugal na empreitada da colonização,

na empreitada da escravidão, da exploração de mentes e corpos negros por mais de três

séculos, do genocídio desse povo.

A principal sócia.

E durante todos esses anos, a igreja católica foi a principal responsável por perseguir

qualquer manifestação religiosa que não fosse a do catolicismo.

A igreja católica desenvolveu uma justificativa ideológica e política de liberdade.

A igreja católica desenvolveu uma justificativa ideológica e teológica para a barbárie

que foi a escravidão.

Algumas dessas ideias permanecem até hoje e dão base não só para a intolerância

religiosa, para o terrorismo contra a religião de matriz africana, mas dão base para o próprio

racismo.

Eu sou o Tiago Rogero e este é o podcast do Projeto Quirino, produzido pela Rádio

Novelo.

Episódio 6 – Acordos Faraós

Até onde se sabe, a primeira viagem de tráfico negreiro de escravizados foi lá por volta

de 1440, quando um português, a mando da coroa portuguesa, foi até a região do Rio

do Ouro, no continente africano, para comprar azeite e pele de leão marinho.

Daí esse português sequestrou 12 africanos e levou para Portugal.

Uns três anos depois teve o primeiro leilão de escravizados em Portugal.

E aí já eram mais de 200 pessoas, entre elas crianças.

E é sempre bom lembrar que não foi nesse momento que a escravidão começou, que ela

foi inventada.

A escravidão já existia e há muito tempo.

Tinha escravizado na Grécia Antiga, por exemplo.

A própria palavra escravo, e fica mais fácil quando a gente pensa nela em inglês, slave,

vem do latim slavos, que é uma referência aos eslavos que por muito tempo foram escravizados.

E o povo eslavo é branco.

É que havia muitos motivos para se escravizar uma pessoa.

Podia ser como resultado de uma guerra, por exemplo, ou por dívida.

Mas não se escravizava alguém só por ser de determinada raça, muito menos só por

ser negro.

Até porque essa ideia de quem é negro e quem não é, é uma ideia criada depois,

justamente para justificar essa nova forma de escravidão que surge a partir do momento

em que Portugal começa a expandir o seu império.

Uma forma mercantil, em que a pessoa escravizada se transforma em mercadoria, e na mais valiosa

e lucrativa mercadoria de todas.

Quem começa com isso é Portugal.

Portugal e a Igreja Católica.

Porque a Igreja é quem dá autorização para isso.

A Igreja deu subsídio moral e ideológico para que a coroa portuguesa escravizasse os

africanos.

Pouco depois desse primeiro leilão de escravizados, o Papa publicou uma bula que os historiadores

chamam de a Carta Régia do Imperialismo Português.

E lá ele autorizava a escravização dos africanos.

A desculpa era, a escravidão serviria para salvar a alma deles, porque quem sequestrava

estaria convertendo aquelas pessoas para o cristianismo.

Mas eu queria que a gente tentasse pensar no continente africano antes de tudo isso.

Bom, meu nome é Fernanda Tomaz, sou professora de História da África da Universidade Federal

de Juiz de Fora.

Pensar o continente africano antes do tráfico transatlântico, penso em diversidade.

Porque eram povos diferentes, não eram irmãos, sabe?

Esse papo é nosso, eram os irmãos.

A ideia de África nem existia.

Essa ideia de África era puxada pelos europeus.

Exatamente com esse contato ao longo do tráfico de escravizados, depois com o colonialismo,

e aí sim define o outro como um continente africano.

Não é essa identidade de ser africano não, o cara era bacongo, o outro era ovibundo,

sei lá, o outro era macua, maconde, alçá, entende?

Em termos culturais, a gente está falando de um continente com mais de 30 milhões de

quilômetros quadrados, um continente com dimensões gigantescas, que hoje tem cerca

de 2 mil povos.

Mesmo sabendo da complexidade que é tentar pensar em definir uma religiosidade num continente

tão diverso, com povos tão distintos, eu perguntei pra Fernanda se haveria elementos

em comum entre boa parte dessas diferentes culturas.

Primeira coisa, Tiago, é a gente ter noção de que é muito da nossa sociedade separar

sagrado e profano.

E eu não sei nem se o termo religião daria conta pra pensar nessas práticas espirituais

do continente africano, das sociedades africanas.

Mas acho que o primeiro ponto a pensar é que não há uma separação, o cotidiano está

mergulhado em espiritualidade.

Pensando na linha do deserto do Saara pra baixo, é muito comum o culto aos ancestrais

na grande maioria das sociedades africanas.

O culto aos ancestrais.

Eu estou falando de sociedades em que o pertencimento histórico, o pertencimento num território

tem a ver com as suas heranças na relação de parentes, as suas heranças na linhagem.

Ou seja, é quem na verdade cuidou de você, é quem trouxe você pro mundo, é que na

verdade um dia ele vai ser o mais velho e um dia ele vai ser o ancestral.

E era uma relação não só com quem veio antes, mas com o território também.

Tem um caso, era um jornalista conhecido, lutou pra independência de Moçambique, enfim,

e que não tem o digno pro pai, na concepção dele, e enterrou no cemitério da cidade.

Passaram-se 20 anos, ele teve AVC, vários problemas, inclusive profissionais.

Ele procurou todos os meios, desde o cuidado físico, ia ao médico, enfim, mas outras

coisas acontecendo que não tinha explicação.

E aí ele procurou um curandeiro.

E aí o curandeiro disse pra ele, olha, o seu pai quer falar com você, você precisa

jogar os oráculos pra você saber o que o seu pai quer falar com você.

Aí ele não acreditou, né?

Eu sou homem da ciência, vou pensar nisso?

Daí que ele descobriu, o pai dele tinha sido enterrado no cemitério da cidade e ele queria

ser enterrado na terra onde estavam os avós, os antepassados, os ancestrais dele.

E aí ele faz uma ação das ossadas, transporta tudo para Iambane, lá pra terra onde estavam

os ancestrais.

E aí teve todo um ritual, enfim, né?

Após o ritual, a vida dele voltou à normalidade, entende?

Tudo voltou à normalidade.

Tem uma palavra de origem banto, kalunga, e ela quer dizer um monte de coisa.

Um significado bem comum é o de morte, além.

Daí eu já tinha lido que pra muitos povos africanos que foram escravizados, a travessia

pelo mar, aqueles dias todos no porão de um navio negreiro, aquilo era encarado como

uma morte mesmo.

Porque o mar era chamado de Kalunga Grande.

Mas eu entendi errado.

A morte, em muitas sociedades africanas, ela simboliza uma outra coisa.

A morte não é um problema, sabe?

A morte não é obscura.

A morte é simplesmente uma passagem nessa existência.

O mundo vivo depende do mundo dos mortos e vice-versa, sabe?

Porque o mundo dos mortos é o que me dá sentido, sabe?

Dá sentido pra minha existência.

A morte, ela só simboliza uma passagem, que é pra ir pra esse outro mundo.

A travessia no navio negreiro não era a morte.

A travessia era algo pior.

Porque, na verdade, corta seu eixo com seu território.

O mar simboliza esse tempo de ida que não tem volta.

E esse mar é o que corta a sua relação com a sua linhagem, com o seu território

de onde você veio.

E corta a sua relação com a sua história.

Porque ainda que você leve seus ancestrais contigo, a relação não é mesmo do lugar

em que você vive, porque você largou seu eixo, sabe?

Esse indivíduo que tem toda uma relação de curatividade, ele passa a ser individualizado.

E eu acho que essa individualização é quando esses jundidos são comprados na Costa e eles

atravessam.

Quando eles atravessam, eles estão imergindo em uma outra cultura e numa outra posição

social.

Ele passa a ser mercadoria, ele passa a ser escravo.

A morte se dá num processo e é num processo de travessia.

Mas é uma morte que é feita a partir do desenraizamento.

Essa morte da travessia é muito maior do que a morte física.

E sabe quem também participava do tráfico negreiro?

A igreja.

Em 1558, tinham mais de 10 mil pessoas escravizadas trabalhando em sítios e fazendas dos jesuítas

em Angola.

Daí começaram umas críticas dentro da própria igreja, não à escravidão, mas à participação

deles no tráfico.

E o padre responsável pela missão respondeu que seria impossível sustentar a operação

sem o tráfico negreiro.

Pensando aqui no Brasil agora, a igreja ganhava por cada escravizado que fosse batizado.

E era lei, todo escravizado deveria ser batizado.

E a igreja já tinha tentado justificar a escravidão com aquela desculpa de salvar

almas.

Pra manter de pé o regime escravocrata, a coisa foi ficando ainda mais complexa.

A igreja criou toda uma justificativa ideológica e teológica.

Ela tinha, por exemplo, a ideia de que os africanos deveriam ser escravizados porque

eles teriam sido amaldiçoados.

E havia toda uma pedagogia da escravidão.

A igreja pregava que os senhores tinham nascido para serem senhores e os escravizados para

serem escravizados.

Um dos principais nomes dessa pedagogia era o padre Antônio Vieira, que até hoje dá

nome a uma porção de coisa no Brasil.

Eu já morei numa rua Antônio Vieira, por exemplo.

Ele dizia que o trabalho no engenho era a cruz e que não há trabalho nem gênero de

vida no mundo mais parecido com a paixão de Cristo do que o trabalho escravo nos engenhos.

A religião católica não era só a oficial, era a única permitida.

As manifestações religiosas que não fossem católicas eram classificadas como heresia,

feitiçaria, coisa do demônio.

Aí veio a independência, o Brasil se separou da coroa portuguesa, mas estava lá na Constituição

de 24 que durou até o fim do império.

A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império.

E tinha mais esse trecho.

Todas as outras religiões serão permitidas, e eu chamo atenção para isso, com seu culto

doméstico ou particular em casa para isso destinada.

Mas essa casa não poderia parecer um templo do lado de fora.

E a Constituição também dizia que ninguém pode ser perseguido por religião, uma vez

que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública.

E você sabe o que sempre foi uma ofensa a moral pública no Brasil, né?

Qualquer traço de africanidade, como as religiões de matriz africana.

Embora carreguem elementos seculares e até milenares, as religiões de matriz africana

que nós conhecemos hoje são relativamente recentes, a partir da segunda metade do século

19.

E são várias, né?

Tem as mais conhecidas, candomblé e umbanda, mas também tem o tambor de mina e o terecô

no Maranhão, o xangô e o xambá em Pernambuco e Alagoas, a cabula no Espírito Santo, o

batuque no Rio Grande do Sul, o babassué no Pará, a quimbanda no Rio e em São Paulo,

o omolocô em Minas, no Rio e em São Paulo.

São religiões que nasceram aqui no Brasil, com elementos de diferentes sociedades e culturas

africanas, mas que nasceram no Brasil, são afro-brasileiras.

E não é que não havia essa religiosidade aqui antes do século 19.

Apesar da religião oficial imposta pelo Estado, pessoas negras nunca deixaram de professar

a própria fé.

E tinha muito senhor que, no interior das fazendas, permitia isso para não provocar

uma revolta.

Lembra do tratado do Engenho de Santana, quando os escravizados exigiram poder brincar, folgar

e cantar sem pedir licença?

Isso podia tanto significar o puro e simples lazer quanto religiosidade também.

Chamar de brincadeira era uma forma de proteger esses ritos religiosos.

Era uma forma de resistência.

Com o passar dos anos, até por causa do número cada vez maior de pessoas negras que estavam

conquistando a própria liberdade, foram surgindo mais casas, mais terreiros.

Daí olha esse caso de 1849, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Uma mulher negra fez um requerimento para o chefe de polícia.

Ela fez um pedido.

E quem vai contar aqui é o historiador e professor Paulo Moreira.

Ela se apresenta para o delegado de uma determinada maneira, se apresentando como Maria José

Preta Forra, Rainha Ginga.

Rainha Ginga.

De nação angola, com predomínio sobre as outras nações da costa da África.

E ela reclama de que ela tinha uma licença para brincar com as pessoas da sua nação

E ela pedia então que essa licença fosse renovada.

E aí é interessante a forma como ela se apresenta e como ela tenta disfarçar aquela

manifestação coletiva, aquela manifestação comunitária, como brincadeiras.

E aí a polícia fica toda ressabiada, porque evidentemente, mesmo ela sendo Forra, a presença

dessa mulher e a liderança que ela tinha nessa comunitária, atemorizava aquela sociedade

branca de uma forma que essa sociedade, durante muito tempo, ficou pensando se renovaria

a sua licença.

A licença tinha sido caçada.

E aí então, num determinado momento, a licença dela é renovada, desde que as manifestações,

as festas, os brinquedos fossem feitas extra-muros da cidade.

Ou naquilo que se chamava na época da Varsia de Porto Alegre.

Lembra do nome que ela usou quando fez o requerimento para o chefe de polícia?

A maneira como ela se apresenta como Rainha Ginga não é uma coisa fortuita, não é

uma coisa por acaso.

Ela certamente escolheu aquilo ali.

Talvez ali nesse momento ela estivesse dando uma intimada até no delegado, como se ela

estivesse dizendo, olha, veja bem com quem você está falando, eu sou Rainha Ginga,

eu sou uma mulher que representa várias nações da costa da África.

A Rainha Ginga, como a gente sabe, é uma mulher que realmente existiu, se trata de

Nzinga Mbund, uma mulher que viveu ali de 1582 a 1663, nunca pisou no Brasil, foi uma

rainha no reino do Dongo e reino de Matamba, uma pessoa extremamente importante.

Nos anos em que ela esteve no poder, a Rainha Nzinga conseguiu barrar o avanço de Portugal

sobre o reino dela.

E essa presença da rainha nessa região congo-angola marcou tanto a memória dessas pessoas que

foram trazidas compulsoriamente para o Brasil, que Rainha Nzinga se tornou uma distinção,

se tornou um elemento de prestígio.

Quando a Maria José diz que ela é Rainha Nzinga, ela estava chamando para si uma certa

realeza, mas também uma representatividade ligada à sua ancestralidade.

ANCESTRALIDADE

No Rio Grande do Sul, assim como no Brasil, de uma forma geral, a gente tem uma série

de territórios negros.

E nesses territórios, existem uma série de festividades que dialogam com essa memória

da África.

E aí, nessas manifestações atualmente, nesses territórios negros, a gente ainda

tem a presença da Rainha Nzinga e do Rei Congo.

Tu tem Rainha Nzinga e Rei Congo dentro das Irmandades, isso que a gente chama de afro-catolicismo.

AS IRMANDADES NEGRAS DENTRO DA IGREJA CATÓLICA

As Irmandades Negras é considerada a primeira forma de associativismo negro que surge no Brasil.

Este é o historiador e professor Petrônio Domingues.

O associativismo negro foram as formas encontradas pela população negra de adaptação a esse

novo continente, as Américas.

Essa população desenvolveu várias formas, várias estratégias de resistência.

AS IRMANDADES NEGRAS REMONTAM AO PERÍODO COLONIAL

As Irmandades Negras remontam ao período colonial criadas inicialmente pela iniciativa

dessa população escravizada que buscou seu espaço na Igreja Católica.

Um lugar em que essa população escravizada pudesse professar sua fé.

A Igreja tolerava e até fomentava o surgimento dessas Irmandades Negras que precisavam de

autorização para funcionar.

Do ponto de vista da Igreja, não deixava de ser uma forma de controle e de catequização.

Isso é pelo olhar da Igreja Católica, porque do ponto de vista dos escravizados, as Irmandades

Negras eram um espaço de resistência.

Era um espaço em que eles se sentiam fortalecidos, se sentiam unidos e fortes em função dessa

união coletiva.

Porque era um espaço em que você iria não só ter um espaço de culto, um espaço em

que você professasse sua fé, um espaço para você poder fazer sua prece, você cultuar

o seu santo, mas também era um espaço em que você encontrasse a sua própria esposa

e também era um espaço em que você encontrava os seus, seus irmãos, seus irmãos de cor.

Era um espaço em que essa população de cor se unia, se fortalecia do ponto de vista

da sua identidade e era um espaço em que também se articulava a luta pela conquista

da liberdade.

Então as Irmandades Negras foram responsáveis por comprar muitas alforrias.

As Irmandades também construíram igrejas, porque os negros, mesmo que eram livres,

não eram bem aceitos nas igrejas dos brancos.

Os africanos e seus descendentes acabaram criando um catolicismo popular, muito permeado

pelo sincretismo, pela mistura de elementos com as religiões de matrizes indígena e

africana.

E houve muitos casos de seguidores de religiões de matriz africana que também faziam parte

de Irmandades católicas e não só de seguidores, mas também de líderes dessas religiões.

A mãe Aninha, uma das mais importantes mães de santo da nossa história, que nasceu em

1869 em Salvador, fez parte de duas Irmandades católicas.

E além da compra de alforrias, as Irmandades garantiam também uma boa morte, um enterro

digno, com direito a funeral, missa.

Quando João Cândido, o almirante negro, foi julgado pela Marinha do Brasil por se

revoltar contra os castigos corporais, na Revolta da Chibata, ele e os outros marinheiros

que sobreviveram, os que não foram assassinados pela Marinha, foram defendidos por advogados

contratados pela Irmandade do Rio.

Isso tudo foi já na República, porque depois da Abolição e da República, as Irmandades

continuaram a existir.

Assim como continuou a perseguição às religiões de matriz africana.

Quando é proclamada a República, é interessante observar que a Abolição se dá em 88, a

República vem em 89 e em 90 nasce primeiro o código criminal.

Aqui de novo o Babalaô Ivanir dos Santos.

O que ele está contando é que em 1890, depois do golpe que derrubou o Império e instituiu

a República, o governo provisório publicou um decreto que tornou o Brasil, pela primeira

vez, um Estado laico.

Ao menos na teoria.

Mas ainda naquele ano, veio o que?